segunda-feira, 16 de setembro de 2013

O conceito de gênero por Joan Scott: gênero enquanto categoria de análise






Até a década de 80, sobrevivia com força a dualidade entre sexo e gênero, sendo o primeiro para a natureza e o segundo, para cultura. Uma das feministas que mais abalou essa concepção, trazendo novas perspectivas para os estudos de gênero, foi a historiadora estadunidense Joan Scott, quando da escrita de seu célebre artigo Gênero: uma categoria útil de análise histórica (1995), publicado originalmente em 1986.

Seu artigo tornou-se um clássico já quando publicado, sendo indiscutível sua influência não só nos Estados Unidos. Scott inicia o texto chamando atenção para o que ela considera os usos descritivos de gênero: quando apenas se olham para questões envolvendo mulheres e homens sem que se vá muito além.






A historiadora, assumidamente pós-estruturalista, retoma o método de desconstrução do francês Jacques Derrida e busca, de fato, desconstruir vícios do pensamento ocidental, como a oposição tida como universal e atemporal entre homem e mulher (PISCITELLI, 2002). Scott, também influenciada por Michel Foucault, entende o gênero como um saber sobre as diferenças sexuais. E, havendo uma relação inseparável entre saber e poder, gênero estaria imbricado a relações de poder, sendo, nas suas palavras, uma primeira forma de dar sentido a estas relações.

Juntando esses referenciais, Scott conclui que gênero é uma percepção sobre as diferenças sexuais, hierarquizando essas diferenças dentro de uma maneira de pensar engessada e dual. Scott não nega que existem diferenças entre os corpos sexuados. O que interessa a ela são as formas como se constroem significados culturais para essas diferenças, dando sentido para essas e, consequentemente, posicionando-as dentro de relações hierárquicas.

São símbolos e significados construídos sobre a base da percepção da diferença sexual, utilizados para a compreensão de todo o universo observado, incluindo as relações sociais e, mais precisamente, as relações entre homens e mulheres (CARVALHO, 2011). Temos, portanto, a tal utilidade analítica de gênero: a possibilidade de nos aprofundar nos sentidos construídos sobre os gêneros masculino e feminino, transformando “homens” e “mulheres” em perguntas, e não em categorias fixas, dadas de antemão.

O reconhecimento das diferenças entre os corpos não leva, contudo, à manutenção da dicotomia sexo x gênero. Pois, se o corpo é sempre entendido a partir de um ponto de vista social, o conceito de sexo estaria subsumido no conceito de gênero(NICHOLSON, 2000). Logo, não faria sentido pensar o sexo como pertencente à natureza, esta inquestionável, porque a própria separação entre natureza e cultura já seria um produto cultural.

E, na opinião da historiadora, como se daria essa construção? Talvez esse seja justamente o seu ponto fraco – até porque é exatamente onde mais recaem as críticas –, mas Scott deixa a cargo principalmente da linguagem e do discurso. Para ela, é um universo simbólico que organiza socialmente aquilo que podemos enxergar nos corpos, nas relações sociais etc. Fico devendo, nesse momento, um aprofundamento nesta questão por motivo de espaço.





Fonte: Ensaios de Gênero

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Cartilha LGBT



Esta imagem é uma das paginas da Cartilha LGBT´s elaborada pelo cartunista Luis Augusto para a Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do Estado da Bahia.A cartinha em formato de historia em quadrinho vai aborda saúde,educação, segurança, trabalho,cidadania, justiça,cultura e turismo, contextualizando as situações vivenciadas pela comunidade LGBT´s. O projeto se destina aos servidores públicos baianos para ajudar a melhorar á comunidade LGBT´s nas repartições publicas.

terça-feira, 3 de setembro de 2013

De quem sou filho?


                                
Por Maria Berenice Dias

Ao menos até o atual estágio da ciência genética, todas as pessoas são filhas de uma mulher. Todos são gerados no ventre de uma pessoa do sexo feminino. Esta sempre foi uma verdade tão evidente que é latina a expressão: mater semper certa est. A mãe é sempre certa.

Quanto à paternidade, a verdade nunca foi tão evidente, ou melhor, tão aparente. Mas a necessidade de se certeza do vínculo de filiação paterna impôs uma série de pressuposições de modo a chegar-se a uma presunção. Para dizer que o pai sempre é o marido da mãe, foi preciso fazer as mulheres acreditarem que a virgindade tinha valor. Ou seja, manter íntegro o hímen lhe garantia a condição de pessoa séria e honesta. Pureza, castidade e recato davam às jovens a garantia de que iriam conseguir subir ao altar. Sempre foi este o dado que as diferenciava das chamadas mulheres de “vida fácil”. Qualidade que nunca ninguém conseguiu entender muito o porquê. A tarefa delas, aliás, sempre foi das mais áridas: assegurar prazer sexual sem qualquer contra partida, a não ser de natureza financeira. Mas certamente pagavam um preço muito caro: viver à margem da sociedade. Recebiam toda a sorte de adjetivações para lá de desrespeitosas e, claro, não tinham o direito de amar. Não podiam sequer embalar o sonho de casar com quem se deliciava com suas carícias. Na eventualidade de ocorrer gravidez – algo muito frequente antes do surgimento dos métodos contraceptivos – era impositivo que abortassem. Afinal, o filho jamais poderia ter um pai, um nome, uma família. Esta marginalização, aliás, era consagrada legalmente, o que deixava os homens em situação para lá de confortável. Os filhos havidos fora do casamento eram considerados ilegítimos, bastardos. Eram condenados a serem filhos da puta.

A necessidade de as moças casarem virgens era imposta pelos costumes. O lençol manchado de sangue era exposto no balcão da casa, motivo de júbilo para as famílias dos noivos. Também nesta seara havia a interferência da lei. A ausência da virgindade configurava erro essencial de pessoa e garantia ao marido o direito de pedir a anulação do casamento.

Mas havia mais um ingrediente para garantir a certeza da paternidade. A mulher casada precisava manter uma postura de recato e seriedade. Seu lugar era o lar, para dirigir a casa, criar os filhos e cuidar do marido. Este se tornava o seu senhor. A lei o considerava o cabeça do casal, o chefe da sociedade conjugal. Mas tinha mais. Por décadas, a mulher ao casar, perdia a plena capacidade, ou seja, restava meio idiota. Nada podia fazer sem a assistência do marido. Sequer podia trabalhar “fora” sem sua expressa autorização.

Assim ficava fácil. Se o homem casava a com uma virgem, que nada podia fazer sem a sua aquiescência e a mantinha refém no lar, claro que o filho que ela tivesse só poderia ser filho dele. Esta ilação transformou-se em presunção legal. Até hoje o marido pode, sem a presença da esposa, registrar o filho como seu. Basta comparece ao cartório acompanhado de duas testemunhas munido de uma certidão de casamento e da declaração de nascido vivo fornecido pela maternidade. Já a mãe não pode registrar o filho em nome do marido se ele não se fizer presente no cartório.

A possibilidade de registro pelo pai existe no casamento, mas não na união estável. O companheiro, ainda que tenha em mãos um contrato de convivência ou até uma sentença declaratória de união estável, não pode proceder ao registro do filho. Nada disso basta. Já o casado nem precisa comprovar a concordância da mãe para tornar-se pai. A explicação é para lá de bizarra: no casamento existe dever de fidelidade enquanto na união estável o compromisso é só de lealdade. De qualquer modo, esta esquisita presunção nem é de paternidade, mas de fidelidade da mulher ao seu marido.

Mas se tudo isso era necessário pela dificuldade em saber quem é o pai de alguém – até porque, em nome da moral e dos bons costumes relações sexuais acontecem a descoberto de testemunhas – dois acontecimentos não permitem que persistam estas práticas. Primeiro foi o surgimento da possibilidade de o vínculo parental ser afirmado com alto grau de certeza. A partir da identificação do código genético, através do exame do DNA, nada existe de mais seguro para dissipar qualquer dúvida do genitor.

Esta descoberta teve efeito de outra ordem. Sepultou de vez o tabu da virgindade, que perdeu significado como elemento qualificador da mulher. Sua honradez não mais depende da integridade e seu hímen. De outro lado, nas ações investigatórias de paternidade, a alegação de que a mãe poderia ter tido contato sexual com mais de uma pessoa – argumento conhecido pela feia expressão exceptio plurium concubentium – deixou de servir de justificativa para a improcedência da ação. A vida sexual da mãe não cabe ser invocada como meio de defesa.

O outro acontecimento revolucionário foi o surgimento das técnicas de reprodução assistida. As pessoas não mais são frutos exclusivamente de uma relação sexual entre um homem e uma mulher. Bancos de sêmen, fecundação in vitro, gestação por substituição fez pluralizarem os vínculos parentais. Hoje em dia para alguém ser pai ou ser mãe não precisa ter um par.

Agora nem mais a maternidade é certa. Mãe passou a ter adjetivos. Nem sempre a mãe biológica é a mãe gestacional. E talvez nenhuma delas seja de fato a mãe registral. Ou seja, mãe não é somente aquela que teve um óvulo fecundado e nem quem o carregou no ventre por nove meses. Para ser mãe nem é preciso participar do processo reprodutivo. Mãe é quem deseja ter um filho. É o que basta para ser reconhecido o direito de registrar como seu o filho que não deu à luz e nem tem sua carga genética. O mesmo acontece com relação ao pai. Deixou de ser exclusivamente o marido da mãe.

Assim, estão sepultadas as presunções de parentalidade. Principalmente a partir do reconhecimento das uniões homoafetivas, a quem a justiça assegurou acesso ao casamento. Resolução do Conselho Federal de Medicina autorizou o uso das técnicas de procriação assistida aos parceiros homossexuais. A persistir tais presunções, por elementar princípio da igualdade, não é possível impedir que seja registrado como de ambos, o filho do casal de homens, ou de mulheres. Caso eles sejam casados, vivam em união estável ou comprovem terem se submetido às técnicas de reprodução assistida, é o que basta para procederem ao registro da dupla maternidade ou paternidade.

Não há forma mais humana, ágil, efetiva e afetiva para que crianças saibam desde sempre de quem são filhos!

Por

Maria Berenice Dias

Advogada especializada em Direito das Famílias

Vice-Presidenta Nacional do IBDFAM