segunda-feira, 16 de setembro de 2013

O conceito de gênero por Joan Scott: gênero enquanto categoria de análise






Até a década de 80, sobrevivia com força a dualidade entre sexo e gênero, sendo o primeiro para a natureza e o segundo, para cultura. Uma das feministas que mais abalou essa concepção, trazendo novas perspectivas para os estudos de gênero, foi a historiadora estadunidense Joan Scott, quando da escrita de seu célebre artigo Gênero: uma categoria útil de análise histórica (1995), publicado originalmente em 1986.

Seu artigo tornou-se um clássico já quando publicado, sendo indiscutível sua influência não só nos Estados Unidos. Scott inicia o texto chamando atenção para o que ela considera os usos descritivos de gênero: quando apenas se olham para questões envolvendo mulheres e homens sem que se vá muito além.






A historiadora, assumidamente pós-estruturalista, retoma o método de desconstrução do francês Jacques Derrida e busca, de fato, desconstruir vícios do pensamento ocidental, como a oposição tida como universal e atemporal entre homem e mulher (PISCITELLI, 2002). Scott, também influenciada por Michel Foucault, entende o gênero como um saber sobre as diferenças sexuais. E, havendo uma relação inseparável entre saber e poder, gênero estaria imbricado a relações de poder, sendo, nas suas palavras, uma primeira forma de dar sentido a estas relações.

Juntando esses referenciais, Scott conclui que gênero é uma percepção sobre as diferenças sexuais, hierarquizando essas diferenças dentro de uma maneira de pensar engessada e dual. Scott não nega que existem diferenças entre os corpos sexuados. O que interessa a ela são as formas como se constroem significados culturais para essas diferenças, dando sentido para essas e, consequentemente, posicionando-as dentro de relações hierárquicas.

São símbolos e significados construídos sobre a base da percepção da diferença sexual, utilizados para a compreensão de todo o universo observado, incluindo as relações sociais e, mais precisamente, as relações entre homens e mulheres (CARVALHO, 2011). Temos, portanto, a tal utilidade analítica de gênero: a possibilidade de nos aprofundar nos sentidos construídos sobre os gêneros masculino e feminino, transformando “homens” e “mulheres” em perguntas, e não em categorias fixas, dadas de antemão.

O reconhecimento das diferenças entre os corpos não leva, contudo, à manutenção da dicotomia sexo x gênero. Pois, se o corpo é sempre entendido a partir de um ponto de vista social, o conceito de sexo estaria subsumido no conceito de gênero(NICHOLSON, 2000). Logo, não faria sentido pensar o sexo como pertencente à natureza, esta inquestionável, porque a própria separação entre natureza e cultura já seria um produto cultural.

E, na opinião da historiadora, como se daria essa construção? Talvez esse seja justamente o seu ponto fraco – até porque é exatamente onde mais recaem as críticas –, mas Scott deixa a cargo principalmente da linguagem e do discurso. Para ela, é um universo simbólico que organiza socialmente aquilo que podemos enxergar nos corpos, nas relações sociais etc. Fico devendo, nesse momento, um aprofundamento nesta questão por motivo de espaço.





Fonte: Ensaios de Gênero

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Cartilha LGBT



Esta imagem é uma das paginas da Cartilha LGBT´s elaborada pelo cartunista Luis Augusto para a Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do Estado da Bahia.A cartinha em formato de historia em quadrinho vai aborda saúde,educação, segurança, trabalho,cidadania, justiça,cultura e turismo, contextualizando as situações vivenciadas pela comunidade LGBT´s. O projeto se destina aos servidores públicos baianos para ajudar a melhorar á comunidade LGBT´s nas repartições publicas.

terça-feira, 3 de setembro de 2013

De quem sou filho?


                                
Por Maria Berenice Dias

Ao menos até o atual estágio da ciência genética, todas as pessoas são filhas de uma mulher. Todos são gerados no ventre de uma pessoa do sexo feminino. Esta sempre foi uma verdade tão evidente que é latina a expressão: mater semper certa est. A mãe é sempre certa.

Quanto à paternidade, a verdade nunca foi tão evidente, ou melhor, tão aparente. Mas a necessidade de se certeza do vínculo de filiação paterna impôs uma série de pressuposições de modo a chegar-se a uma presunção. Para dizer que o pai sempre é o marido da mãe, foi preciso fazer as mulheres acreditarem que a virgindade tinha valor. Ou seja, manter íntegro o hímen lhe garantia a condição de pessoa séria e honesta. Pureza, castidade e recato davam às jovens a garantia de que iriam conseguir subir ao altar. Sempre foi este o dado que as diferenciava das chamadas mulheres de “vida fácil”. Qualidade que nunca ninguém conseguiu entender muito o porquê. A tarefa delas, aliás, sempre foi das mais áridas: assegurar prazer sexual sem qualquer contra partida, a não ser de natureza financeira. Mas certamente pagavam um preço muito caro: viver à margem da sociedade. Recebiam toda a sorte de adjetivações para lá de desrespeitosas e, claro, não tinham o direito de amar. Não podiam sequer embalar o sonho de casar com quem se deliciava com suas carícias. Na eventualidade de ocorrer gravidez – algo muito frequente antes do surgimento dos métodos contraceptivos – era impositivo que abortassem. Afinal, o filho jamais poderia ter um pai, um nome, uma família. Esta marginalização, aliás, era consagrada legalmente, o que deixava os homens em situação para lá de confortável. Os filhos havidos fora do casamento eram considerados ilegítimos, bastardos. Eram condenados a serem filhos da puta.

A necessidade de as moças casarem virgens era imposta pelos costumes. O lençol manchado de sangue era exposto no balcão da casa, motivo de júbilo para as famílias dos noivos. Também nesta seara havia a interferência da lei. A ausência da virgindade configurava erro essencial de pessoa e garantia ao marido o direito de pedir a anulação do casamento.

Mas havia mais um ingrediente para garantir a certeza da paternidade. A mulher casada precisava manter uma postura de recato e seriedade. Seu lugar era o lar, para dirigir a casa, criar os filhos e cuidar do marido. Este se tornava o seu senhor. A lei o considerava o cabeça do casal, o chefe da sociedade conjugal. Mas tinha mais. Por décadas, a mulher ao casar, perdia a plena capacidade, ou seja, restava meio idiota. Nada podia fazer sem a assistência do marido. Sequer podia trabalhar “fora” sem sua expressa autorização.

Assim ficava fácil. Se o homem casava a com uma virgem, que nada podia fazer sem a sua aquiescência e a mantinha refém no lar, claro que o filho que ela tivesse só poderia ser filho dele. Esta ilação transformou-se em presunção legal. Até hoje o marido pode, sem a presença da esposa, registrar o filho como seu. Basta comparece ao cartório acompanhado de duas testemunhas munido de uma certidão de casamento e da declaração de nascido vivo fornecido pela maternidade. Já a mãe não pode registrar o filho em nome do marido se ele não se fizer presente no cartório.

A possibilidade de registro pelo pai existe no casamento, mas não na união estável. O companheiro, ainda que tenha em mãos um contrato de convivência ou até uma sentença declaratória de união estável, não pode proceder ao registro do filho. Nada disso basta. Já o casado nem precisa comprovar a concordância da mãe para tornar-se pai. A explicação é para lá de bizarra: no casamento existe dever de fidelidade enquanto na união estável o compromisso é só de lealdade. De qualquer modo, esta esquisita presunção nem é de paternidade, mas de fidelidade da mulher ao seu marido.

Mas se tudo isso era necessário pela dificuldade em saber quem é o pai de alguém – até porque, em nome da moral e dos bons costumes relações sexuais acontecem a descoberto de testemunhas – dois acontecimentos não permitem que persistam estas práticas. Primeiro foi o surgimento da possibilidade de o vínculo parental ser afirmado com alto grau de certeza. A partir da identificação do código genético, através do exame do DNA, nada existe de mais seguro para dissipar qualquer dúvida do genitor.

Esta descoberta teve efeito de outra ordem. Sepultou de vez o tabu da virgindade, que perdeu significado como elemento qualificador da mulher. Sua honradez não mais depende da integridade e seu hímen. De outro lado, nas ações investigatórias de paternidade, a alegação de que a mãe poderia ter tido contato sexual com mais de uma pessoa – argumento conhecido pela feia expressão exceptio plurium concubentium – deixou de servir de justificativa para a improcedência da ação. A vida sexual da mãe não cabe ser invocada como meio de defesa.

O outro acontecimento revolucionário foi o surgimento das técnicas de reprodução assistida. As pessoas não mais são frutos exclusivamente de uma relação sexual entre um homem e uma mulher. Bancos de sêmen, fecundação in vitro, gestação por substituição fez pluralizarem os vínculos parentais. Hoje em dia para alguém ser pai ou ser mãe não precisa ter um par.

Agora nem mais a maternidade é certa. Mãe passou a ter adjetivos. Nem sempre a mãe biológica é a mãe gestacional. E talvez nenhuma delas seja de fato a mãe registral. Ou seja, mãe não é somente aquela que teve um óvulo fecundado e nem quem o carregou no ventre por nove meses. Para ser mãe nem é preciso participar do processo reprodutivo. Mãe é quem deseja ter um filho. É o que basta para ser reconhecido o direito de registrar como seu o filho que não deu à luz e nem tem sua carga genética. O mesmo acontece com relação ao pai. Deixou de ser exclusivamente o marido da mãe.

Assim, estão sepultadas as presunções de parentalidade. Principalmente a partir do reconhecimento das uniões homoafetivas, a quem a justiça assegurou acesso ao casamento. Resolução do Conselho Federal de Medicina autorizou o uso das técnicas de procriação assistida aos parceiros homossexuais. A persistir tais presunções, por elementar princípio da igualdade, não é possível impedir que seja registrado como de ambos, o filho do casal de homens, ou de mulheres. Caso eles sejam casados, vivam em união estável ou comprovem terem se submetido às técnicas de reprodução assistida, é o que basta para procederem ao registro da dupla maternidade ou paternidade.

Não há forma mais humana, ágil, efetiva e afetiva para que crianças saibam desde sempre de quem são filhos!

Por

Maria Berenice Dias

Advogada especializada em Direito das Famílias

Vice-Presidenta Nacional do IBDFAM

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

TRÊS DOCUMENTÁRIOS SOBRE DIVERSIDADE SEXUAL

Leve-me Pra Sair, O Segredo dos Lírios e Não Gosto de Meninos contam as experiências e o processo de aceitação de jovens gays




DOCUMENTÁRIO "LEVE-ME PRA SAIR" CONVERSA COM 10 JOVENS HOMOSSEXUAIS 


Assumir a homossexualidade hoje é mais fácil do que já foi um dia, mas o preconceito ainda existe e continua sendo um empecilho para jovens que estão descobrindo a sua sexualidade. Nessa mistura de maior aceitação sem ignorar o ainda existente preconceito, documentários com a temática gay foram produzidos a fim de entender o processo de descobrir-se e assumir-se homossexual e, mais importante ainda, de disseminar essa escolha com normalidade.

1. LEVE-ME PRA SAIR
10 jovens gays bem resolvidos com a sua sexualidade são questionados com uma série de perguntas. Eles comentam desde como revelaram a opção sexual para a família até se ser gay define quem eles são.
É um documentário que inspira. São pessoas que se aceitam do jeito que são, mesmo que para isso tenham de enfrentar dificuldades causadas pelo velho preconceito.




2. O SEGREDO DOS LÍRIOS
E como as mães lidam quando ficam sabendo que a filha gosta de meninas? No documentário O Segredo dos Lírios, três mães gaúchas contam como foi o processo de aceitação da opção sexual de suas filhas. Sensível e sincero.



3. NÃO GOSTO DOS MENINOS
Mais de 40 pessoas, entre jovens e adultos, contam as suas histórias e conflitos pessoais, familiares e sociais pelos quais passaram por ser homossexuais. 

“A escola ainda é um espaço homofóbico e transfóbico”, diz Marina Reidel


Marina defendeu na semana passada sua dissertação de mestrado, intitulada “A pedagogia do salto alto – Histórias de professoras transexuais e travestis na Educação Brasileira” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Débora Fogliatto e Samir Oliveira

Marina Reidel é a primeira mulher transexual a conquistar o título de Mestre pela Faculdade de Educação da UFRGS. A professora defendeu sua dissertação na sexta-feira (23), em Porto Alegre, diante de um auditório lotado de acadêmicos, autoridades e ativistas da comunidade LGBT.

Intitulada “A pedagogia do salto alto – Histórias de professoras transexuais e travestis na Educação Brasileira”, a pesquisa estuda a inserção de sete professoras trans em escolas de diferentes regiões do país.

Nesta entrevista ao Sul21, Marina Reidel comenta sobre a realização do seu trabalho e afirma que a escola é um ambiente homofóbico e transfóbico que precisa se reinventar. Ela conta que o maior desafio enfrentado pelas professoras trans vem justamente do preconceito de seus colegas professores – e não de pais ou alunos da comunidade escolar. “Os professores ainda não estão preparados para lidar com essas questões”, lamenta.

Marina Reidel é natural de Montenegro. Licenciada em Artes Visuais, com pós-graduação em Psicopedagogia, ela trabalhou com alfabetização e educação infantil durante dez anos. Atualmente, ainda trabalha como professora de Artes na Fundarte, em Montenegro. Também é assessoria da Coordenadoria da Diversidade da prefeitura de Canoas.
“Quando eu me transformei, achei que era a única professora trans do país. Mas existiam outras e eu comecei a conhecê-las”


Sul21 – Como iniciou a tua trajetória na área da educação?
Marina Reidel – Sou natural de Montenegro e sou professora há 23 anos – 10 anos enquanto professora transexual. Atualmente, sou professora de Artes da Fundarte, em Montenegro, onde atuo há 20 anos. Foi lá que eu passei pelo processo de transformação, assim como na Escola Estadual Rio de Janeiro, em Porto Alegre. Eu já saí da escola Rio de Janeiro, mas continuo trabalhando em Montenegro como professora de Artes Visuais. Dentro do projeto de ações comunitárias da Fundarte, atuo numa vila carente com crianças pequenas, de 7 a 10 anos. Elas me chamam de “professora pinheirinho”, porque estou sempre cheia de colares. Também atuo como arte-terapeuta dentro de um Centro de Atendimento Psicossocial (CAPS).

Marina: “Quando fiz minha transformação, comecei a circular mais no mundo trans e no mundo LGBT. Comecei a ficar mais ativista” | Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – E como foi a aceitação, nestes ambientes profissionais, do teu processo de transformação?
Marina - Nunca tive nenhum problema ou questionamento dentro desses projetos. Fui convidada a ir na escola e a diretora me colocou na frente de 100 alunos e disse: “agora perguntem tudo o que querem saber da professora Marina, porque depois não quero saber de fofoca”. E então começaram a perguntar coisas bobas, se eu era casada, se tinha cachorro… Ninguém perguntava sobre as questões que eu sabia que eles tinham curiosidade. E então algum aluno mencionou que estão estudando borboletas, e eu disse: “agora vai começar a minha aula”. Aí falei sobre toda a história do casulo que vira borboleta. Hoje chego lá e eles vêm, me abraçam, me beijam, não têm problema nenhum.

Sul21 – O ambiente escolar lidou bem com essa mudança?
Marina - Foi todo um repensar. A escola repensou, assim como a própria Fundarte. Foi tranquilo, mas sempre se espera o pior. Até por ser uma cidade do interior. Não fui expulsa de lá, porque não havia assumido publicamente a minha identidade de gênero. Eu saí de lá como “homenzinho”, de calça jeans e camiseta, e retornei no salto. Mas foi tranquilo, não houve nenhum problema. Claro que as pessoas sabiam, a direção da escola sabia. Houve toda uma construção para “preparar o campo”. Quando eu retornei os alunos já sabiam desse processo. Houve uma repercussão e uma expectativa dos alunos de como eu retornaria. Mas não houve nenhum questionamento de pais nem de alunos.

Sul21 – Como tu chegaste ao tema da tua pesquisa de mestrado?
Marina - Quando fiz minha transformação, comecei a circular mais no mundo trans e no mundo LGBT. Comecei a ficar mais ativista. Dentro do movimento, tivemos a ideia de criar uma rede de professores transexuais e travestis no Brasil. Quando eu me transformei, achei que era a única professora trans do país. Mas existiam outras e eu comecei a conhecê-las dentro dessa perspectiva. Quando fiz a prova do mestrado, a minha ideia era envolver essas pessoas. Talvez para dar mais visibilidade, mostrar que elas existem e que as trans não estão só nas calçadas. Não sou contra a prostituição, pelo contrário, tenho respeito. É o único caminho que muitas têm em um país como o nosso, onde as pessoas não abrem as portas para travestis e trans trabalharem. Ou elas fazem um concurso público, ou são cabeleireiras, ou fazem enfermagem, ou são profissionais do sexo.
“No Rio Grande do Sul já encontrei 12 professoras trans e um professor trans. É o estado onde mais encontrei professoras trans”


Sul21 – A licenciatura tem sido uma nova escolha profissional para trans e travestis?
Marina - Comecei a me dar conta que essas pessoas estavam em outros espaços, inclusive na escola. Quando entrei no mestrado, comecei a pesquisar e mapear essas pessoas junto à Rede Trans Educ Brasil. Na época, eram 40 professoras. Hoje existem mais de 80. Existem até trans que são diretoras de escola.

Professora viu no salto alto uma metáfora unindo trans e travestis: “Eu mesmo, quando ia para a escola, os alunos identificavam passando pelos corredores” | Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Como foi o contato com essas professoras?
Marina – Eu entrevistava as professoras nos eventos do movimento trans e do movimento LGBT. Encontrei também gestoras em secretarias de educação; professoras de escola; diretoras… Algumas têm profissões paralelas, mas continuam sendo professoras. Elas não estão só dentro da sala de aula, estão em outros espaços significativos, como secretarias de educação.

Sul21 – Como surgiu a ideia da “Pedagogia do Salto Alto”?
Marina – Quando entrei no mestrado e propus o tema, o meu orientador achou excelente a ideia de buscar as professoras, de ver outras histórias. Criei essa metáfora da “pedagogia do salto alto”, e ele achou excelente. Toda trans e travesti adora um salto alto. Comecei a perceber que essa metáfora poderia provocar algumas questões. Eu mesma, quando ia de salto para a escola Rio de Janeiro, os alunos já brincavam e me identificavam passando pelos corredores.

Sul21 – A tua pesquisa envolveu somente trans mulheres?
Marina – Quando eu comecei a mapear, só encontrava professoras trans mulheres. Depois, quando já estava com a pesquisa quase pronta, encontrei alguns professores trans homens. Um no Rio de Janeiro e outro aqui em Porto Alegre. Eles ainda são um número mais reduzido.

Sul21 – Quantas pessoas estão incluídas na pesquisa e de que regiões do país?
Marina – Oficialmente, entrevistei sete professoras trans das regiões Nordeste, Sudeste, Sul e Centro-Oeste. Mas já mapeei de norte a sul do país. No Rio Grande do Sul já encontrei 12 professoras trans e um professor trans. É o estado onde mais encontrei professoras trans. No Paraná e em Minas Gerais também existem muitas. Em termos de cidade, elas estão bem espalhadas. Existem professoras trans na fronteira gaúcha com o Uruguai e em grandes cidades, como Rio de Janeiro e São Paulo. Também encontrei professoras trans no Sertão do Nordeste. Em Belém, no Pará, encontrei duas professoras transexuais que são irmãs e fazem matemática.
“Todas mostraram, também, que foi na família onde enfrentaram os maiores problemas, principalmente em relação à figura paterna”


Sul21 – E como foram os relatos das histórias de vida das pessoas que tu entrevistaste?
Marina – As histórias de vida vão desde a infância até o momento em que eu as entrevistei. Todas passaram pela questão de terem a expressão de gênero feminina na infância. De querer brincar de casinha, de boneca, enfim, com elementos associados ao feminino e à maternidade. Todas mostraram, também, que foi na família onde enfrentaram os maiores problemas, principalmente em relação à figura paterna. Tem pais que passaram dez anos sem falar com a filha por não aceitar. Outra menina teve que esperar seu pai desenvolver uma doença grave, como Alzheimer, para poder se assumir – já que ele não era mais capaz de identificá-la. E teve uma mãe que colocou fogo nas roupas femininas da filha ao descobrir que ela era trans. Aconteceram as coisas mais absurdas com essas pessoas. Teve uma menina que foi expulsa de casa com 13 anos. Esse é o mundo trans, é o mundo em que vivemos. As meninas são expulsas de casa muito cedo e fogem da escola. O interessante nas professoras trans é que elas lutaram para permanecer estudando. Muitas tiveram que se esconder no armário por muito tempo.

“Esse é o mundo trans, é o mundo em que vivemos. As meninas são expulsas de casa muito cedo e fogem da escola” | Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – E que tipo de dificuldade essas mulheres encontram no ambiente escolar?
Marina – Identifiquei na pesquisa que elas não sofreram nenhum tipo de agressão por parte de alunos e pais na comunidade escolar. O problema foi com os colegas professores e as direções. A escola ainda é um espaço homofóbico e transfóbico. Os professores ainda não estão preparados para lidar com essas questões. Eles não foram preparados para isso porque as universidades não trabalham essas questões. Hoje em dia ainda existem algumas discussões, mas quando eu concluí minha formação, há 12 anos, jamais esse assunto era abordado.

Sul21 – E a relação dessas professoras com os alunos e pais?
Marina – A partir do momento em que elas ingressam neste espaço chamado escola, começam a se tornar um referencial. Lembro do meu tempo como professora, quando eu cheguei na escola no salto, toda montada. Primeiro surgiu aquele auê, aquele burburinho. Nas primeiras aulas, obviamente tive que falar sobre isso. Os alunos perguntam bastante, principalmente os adolescentes, que são mais curiosos. É preciso ter jogo de cintura para saber até onde é possível lidar com essas questões. Tu começas a perceber, neste processo, que os alunos também começam a te contar certas coisas que dizem respeito à sexualidade deles. Lembro que uma aluna me contou que estava grávida, quando não tinha nem contado para a mãe dela. Então eles compartilham suas histórias, expõem suas dúvidas. É o momento que eles têm para falar. O professor não pode abrir mão disso. Todas as professoras trans contaram que são um referencial para os alunos. Isso gera a situação na escola em que tu és solicitada o tempo inteiro para tentar resolver os problemas de homofobia e preconceito.

Sul21 – A presença de professoras trans pode contribuir para diminuir a homofobia, transfobia e outros preconceitos nas escolas?
Marina – Com certeza. O preconceito vai acontecer quando as pessoas não têm conhecimento. A partir do momento em que o aluno viu que eu não era um monstro, houve uma mudança, ele entendeu a questão da transexualidade. Nas minhas aulas nunca aconteceram problemas. E a escola em si começa a mudar com a presença de professoras trans. A escola e o aluno começam a se sensibilizar com essas questões.
“A população trans começa a ser desrespeitada já no próprio nome. O nome social precisa ser respeitado”


Sul21 – Que medidas tu achas que os governos, em todas as esferas, podem implementar, em termos de políticas públicas, para combater a homofobia nas escolas?
Marina – São tantas coisas… Mas começa pelo princípio de que é preciso trabalhar com os profissionais da educação. E também favorecer um material condizente com a realidade. Os livros didáticos de Biologia mostram que “homem é isso, mulher é aquilo”. É preciso construir propostas e políticas em favor das questões de gênero. Em Canoas, estamos nos inserindo na educação em um trabalho transversal, assim como na saúde. Estamos instrumentalizando colegas professores sobre estes assuntos. Os governos também poderiam incentivar que as empresas abrissem as portas para profissionais trans. As meninas querem trabalhar. Aqui em Canoas, conseguimos, com a ajuda da Secretaria de Direitos Humanos, formar uma turma de trans pelo Pronatec. Elas vão iniciar um curso para se tornarem cabeleireiras. A maioria é profissional do sexo e quer fazer outra coisa. Esses estímulos devem ser colocados para que haja uma inserção no mercado.

Mestre em Educação pela UFRGS, Marina Reidel defende que é preciso construir propostas e políticas em favor das questões de gênero | Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – As faculdades também precisam formar seus profissionais de forma mais sensível às questões de gênero?
Marina – Sim, em todas as áreas. O Direito principalmente, assim com a Medicina. Os médicos muitas vezes não querem atender pessoas trans e travestis. Urologista não quer atender travesti, assim como ginecologista não quer atender a mulher transexual que fez a cirurgia. A população trans começa a ser desrespeitada já no próprio nome. O nome social precisa ser respeitado. Outro problema é o banheiro, principalmente nas escolas públicas. Qual o problema de as trans utilizarem o banheiro feminino? Se elas entrarem no banheiro masculino, serão agredidas e constrangidas.

Sul21 – Qual a tua opinião sobre a carteira de nome social? Há pessoas que criticam por dizer que não é o suficiente, que o nome deveria ser trocado na carteira de identidade.
Marina – Só quem não está na pele (faz essa crítica). Claro que é uma medida paliativa, mas foi uma demanda que veio da própria conferência estadual LGBT. A carteira social hoje é uma realidade para muitas travestis que não conseguem alterar o nome. Eu usei a carteira durante um ano enquanto fazia o processo de troca de nome no documento de identidade. A partir daquele momento eu me senti respeitada. É preferível entregar essa carteira, que possui o meu nome, Marina, do que entregar um documento onde aparece o nome do falecido (referência ao nome masculino que recebeu), onde as pessoas irão olhar para a foto e não irão entender nada. Para as mulheres trans e travestis, é muito humilhante chegar em um lugar ser chamada de “João” ou “Carlos”. Sempre que isso acontecia, em alguma situação de atendimento, eu ficava sentada. Nunca levantei quando me chamavam pelo meu nome civil. Eu pedia para me chamarem pelo nome social, mas, às vezes, as pessoas chamavam pelo nome civil de propósito. Eu ficava sentada. Depois de umas quatro ou cinco vezes, levantava e dizia que não tinha sido chamada, fazia um baile. Então a carteira social é um documento emitido pelo governo, as pessoas precisam entender que se trata de uma política afirmativa. Claro, o ideal, o que todas nós queremos, é a alteração do nome. Existe um projeto neste sentido tramitando no Senado, só que ainda não foi aprovado, ao contrário da Argentina, que está anos-luz na nossa frente.

“Nunca levantei quando me chamavam pelo meu nome civil. Eu pedia para me chamarem pelo nome social, mas, às vezes, as pessoas chamavam pelo nome civil de propósito. Eu ficava sentada” | Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Tu conseguiste trocar o nome na carteira de identidade. Foi um processo muito trabalhoso?
Marina – Foi com o pessoal do Serviço de Assistência Jurídica Universitária da UFRGS (SAJU), em um projeto em parceria com a ONG Igualdade e o NUPSEX (Núcleo de Pesquisa em Gênero e Sexualidade). Eles deram os pareceres, que são caríssimos. Os psiquiatras cobram uma fortuna. Neste projeto, os pareceres saíram de graça, então em um mês conseguimos alterar o nome. Nove pessoas entraram com o pedido na Justiça. Acho que o juiz ficou com medo de apanhar das travas e alterou rapidinho (risos).
“A Rede Trans Educ Brasil é sem fins lucrativos, não tem dinheiro para nada, nem apoio do governo. Às vezes eu bato na porta de um ministério e fecham a porta na minha cara”


Sul21 – Tu pensas em estender a pesquisa de mestrado para um doutorado?
Marina – Penso. Essa ideia da pedagogia do salto alto vai ser incorporada pela Rede Trans Educ Brasil. Teremos um encontro nacional das trans em Curitiba e eu vou propor que estudemos essas ideias para termos um referencial teórico sobre essas questões. Algumas professoras trans dizem que se sentem uma ilha. Acreditam que são as únicas professoras trans em suas cidades e em seus estados.

“Algumas professoras trans dizem que se sentem uma ilha”, afirma Marina, que pretende expandir estudos via Rede Trans Educ Brasil | Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Como funciona a organização da Rede Trans Educ Brasil?
Marina – Por enquanto, eu sou coordenadora da rede. Estamos criando um estatuto. É tudo muito devagar. Já criamos uma página no Facebook e estamos nos dividindo em pequenos grupos de trabalho. Estamos começando a andar. É uma rede sem fins lucrativos, não tem dinheiro para nada, nem apoio do governo. Às vezes eu bato na porta de um ministério e fecham a porta na minha cara. Já temos algumas propostas, talvez façamos um encontro estadual aqui em Porto Alegre em 2014. Ainda não temos data para o próximo encontro nacional. Talvez em Curitiba consigamos reunir um maior número de professoras.

Sul21 – Qual a tua função atualmente na prefeitura de Canoas?
Marina – Vim para cá neste ano. Fui convidada para ser assessora de Diversidade, da Coordenadoria de Diversidade. Existem seis coordenadorias ligadas ao gabinete do prefeito que lidam com direitos humanos. A nossa lida com diversidade sexual e religiosa. Além disso, ainda sou funcionária pública do estado. Estou afastada desde o ano passado. Também trabalhei na Secretaria Estadual de Educação, com formação de professores.

“O preconceito vai acontecer quando as pessoas não têm conhecimento. A partir do momento em que o aluno viu que eu não era um monstro, houve uma mudança, ele entendeu a questão da transexualidade” | Ramiro Furquim/Sul21

quarta-feira, 31 de julho de 2013

Quarto encontro: Família e a escola

Programação do encontro com os professores
Grupo de Ação e Formação Múltiplas Sexualidades
01 de agosto

18H - Abertura e acordo sobre o programa

18h20 - Teatro Fórum "O que é que ele/a é?  Camila Oliveira, Camila Carmo e Kiki

19h40 - Intervalo

20h20 - Debate a partir do texto "Homofobia nas Escolas: um problema de todos"

terça-feira, 30 de julho de 2013

28 escolas de ensino médio de Pernambuco combatem o machismo e a homofobia


                         
                  Na Escola Professor Trajano de Mendonça, balões e cartazes decoram a Semana Rosa e Lilás

PE: alunos discutem homofobia e machismo para romper preconceitos
Núcleos de estudo de gênero criados em 28 escolas de ensino médio de Pernambuco ajudam a combater a discriminação

As discussões sobre machismo e homofobia estão nas redes sociais, na TV, nos jornais e não poderiam ficar muito tempo longe da escola. Com o objetivo de promover ações de formação e pesquisa em gênero e educação e incentivar alunos e professores a debaterem estes temas, Escolas Referência de Ensino Médio (Erems) de Pernambuco implementaram, desde o ano passado, Núcleos de Estudos de Gênero e Enfrentamento da Violência Contra a Mulher. Fruto da articulação entre a Secretaria da Mulher e a Secretaria de Educação com as escolas de nível médio, a iniciativa já alcança 28 instituições de ensino do Estado.

Localizada em Jardim São Paulo, na zona oeste do Recife, a Erem Professor Trajano de Mendonça é uma das participantes do projeto. Professores e alunos de diferentes séries e disciplinas formaram o Grupo Margarida Maria Alves de Estudos de Gênero. Coordenadora do grupo e professora de português da instituição, Rosário Leite explica que a escola já tinha um projeto que tratava do tema desde 2011 e, por conta disso, recebeu o convite da Secretaria da Mulher para implantar o núcleo ainda no ano passado. "Ele nasceu com a proposta de discutir a violência contra a mulher, já que o Estado de Pernambuco tem um alto número de casos de agressão contra mulheres, inclusive com mortes. Conforme fomos angariando parceiros, ampliamos o debate para questões de outros gêneros", conta.

Segundo Rosário, o núcleo ainda está em fase inicial. As reuniões ocorrem quinzenalmente, em contraturno, e não são obrigatórias. "É uma atividade voluntária", comenta. Nos encontros, os alunos debatem temas como machismo e homofobia a partir de filmes, notícias, leituras e relatos de experiência. A temática não fica restrita aos debates. "A ideia é trazer essa discussão de gênero para a sala de aula também de forma que perpasse todas as disciplinas, fazendo pontos de intersecção. Queremos trazer para o dia a dia mesmo, pois quanto mais presente a discussão, mais fácil combater a violência", afirma.

A escola também incentiva que os alunos participem de concursos de redação sobre temáticas de gênero. "É muito importante participar de eventos escolares, fazer debates nas salas, oficinas, seminários e palestras", diz Rosário. O marco das discussões, de acordo com ela, é março, na Semana da Mulher, um período especial, com atividades envolvendo toda a escola. "Ampliamos o foco, saímos da questão da violência doméstica e passamos a abordar a diversidade sexual e a questão da igualdade de gêneros. Com o núcleo, os alunos passam a ser sujeitos dessa ação, a ideia é que se transformem em multiplicadores dessa questão contra a violência", completa.

Na Trajano de Mendonça, este período ficou conhecido como Semana Rosa e Lilás, na qual alunos e professores usam peças de roupa nestas cores, além de decorar a escola com balões e cartazes. "Também é realizada uma série de encontros. Nós trazemos voluntários para darem palestras. Neste ano, por exemplo, a semana foi aberta com a discussão sobre homofobia, e finalizamos discutindo violência de gênero no mundo inteiro", diz.

Dos cerca de 700 alunos da escola, entre turmas do nono ano e do ensino médio, participam regularmente dos encontros quinzenais em torno de 20. "Nem sempre são os mesmos. O grupo todo trabalhando chega a 90 alunos diretamente engajados, fora os professores", afirma Rosário. Além disso, a escola mantém um grupo de discussões no Facebook, onde os alunos postam e comentam sobre temas relacionados.

A mudança no tratamento entre os colegas, bem como a conscientização e a formação de multiplicadores contra a violência de gênero, são o resultado da implantação do núcleo. "Isso se reflete até nas famílias, muitos pais passaram a apoiar o projeto", diz. As reuniões auxiliam no desenvolvimento dos alunos e na formação social. "É muito importante para nós que todos participem. Os professores, por exemplo, vão sempre vestidos de rosa na Semana Rosa e Lilás. Ver outros homens usando esta cor, já faz esses alunos enxergarem a questão de outra forma", relata. 

Rosário conta que ainda há brincadeiras e provocações eventualmente na sala de aula ou no intervalo. "Isso acaba repercutindo entre os alunos e vira debate. Os estudantes tornam-se vigilantes. E queremos isso: que conversem sobre o tema, que não seja necessário uma advertência do professor", aponta.

Futuro com menos preconceito

Hoje aos 18 anos, Emanuela Sibalde participou do núcleo desde sua implantação. "Adquiri conhecimento sobre o assunto. A violência contra a mulher é uma realidade que muita gente desconhece. Com o núcleo, debatemos isso e formamos nossa opinião", avalia. A jovem nota que os meninos passaram a respeitar mais as mulheres e as próprias meninas após a discussão em sala de aula. Também acredita que incentivar o debate irá diminuir o preconceito. "Para o futuro, vai ser melhor. Tendo consciência de que somos todos iguais, acredito que vai diminuir o preconceito e a violência contra a mulher", opina.

Os números que indicam o preconceito contra homossexuais, porém, ainda assustam, conforme as estatísticas do Instituto de Pesquisa Maurício de Nassau (IPMN). Levantamento realizado em 26 escolas públicas, em junho, mostrou que mais da metade dos entrevistados, com entre 14 e 20 anos, não são favoráveis à união homossexual, enquanto 30,9% são a favor e 14,8% são indiferentes ao tema.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

A CARNE MAIS EXÓTICA DO MERCADO



Por Jarid Arraes para as Blogueiras Negras

Meninas e mulheres dos mais diversos contextos sociais sofrem com a sexualização exercida pela sociedade. As mulheres negras, no entanto, precisam lidar com estereótipos raciais que hipersexualizam seus corpos não somente por seu gênero, mas também por sua cor. Quando a mulher negra não é considerada indesejável e respulsiva devido a sua pele, acaba se tornando alvo de objetificação racista, que a exotifica sexualmente. Esses estereótipos acabam naturalizando a violência sexual contra as mulheres negras e limitando sua existência a um limbo de rejeição e indesejabilidade.


A maioria das mulheres negras sofrem violência desde a infância, onde aprendem desde cedo que seus corpos não são valiosos e vivem com o conhecimento de que não são desejadas. Muitas meninas negras crescem com a certeza de que cada aspecto do seu corpo é considerado ruim e, assim, acreditam que a única forma de alcançar um patamar de igualdade com as mulheres brancas é “corrigindo” suas características com a ajuda da tecnologia. A hipersexualização do corpo feminino negro, com ênfase em suas características consideradas “excêntricas” e “diferentes do convencional”, promove uma falsa valorização das garotas negras, que deixam de ser completamente rejeitadas para se tornarem aceitas, desde que seus corpos sejam submetidos à exotificação racial.

Essa hipersexualização do corpo feminino negro acrescenta muitos degraus à escada que a mulher negra precisa escalar para garantir seus direitos mais básicos. Assim, naturaliza-se a idéia de que as mulheres negras são somente objetos sexuais exóticos para o consumo alheio, promovendo a marginalização desse grupo. Isso traz grandes obstáculos para que as mulheres negras consigam conquistar algum crescimento profissional e ocupar lugares de relevância em sociedade. As mulheres negras precisam lutar para serem reconhecidas como seres humanos tridimensionais, com gostos, personalidades e características individuais, e não somente seres excêntricos para serem usadas sexualmente por quem quer “experimentar algo diferente”.

Isso acontece porque as mulheres negras são consideradas exóticas, ou seja, extravagantes e diferentes do convencional. Geralmente, são consideradas exóticas coisas que fogem do padrão e fazem parte de culturas diferentes, tais como roupas, músicas ou símbolos religiosos. No Ocidente, o padrão estabelecido é de uma supremacia racial branca, que enxerga com olhos etnocêntricos quaisquer traços de etnias ou culturas não-brancas. O modelo dominante na mídia, nas artes, na ciência e na política elimina qualquer rastro de negritude em suas representações, reduzindo e transformando objetos ou valores importantes para milhares de pessoas negras – ou até mesmo seres humanos inteiros, como é o caso das mulheres negras – em “fetiches”, que são exibidos como excentricidades ou bizarrices.

Se encarar objetos e signos como excêntricos já tem um grande potencial para ser problemático, reduzir seres humanos a símbolos de extravagância é mais do que desrespeito: é desumanização. É lamentável que pessoas sejam consideradas exóticas, objetificadas tais como roupas que saem e entram de moda e que estão disponíveis para o consumo de quem “quer ser diferente”. E é assim que mulheres negras são vistas: como uma espécie de souvenir comprado em viagens internacionais.

A tentativa de exotificar a aparência das mulheres negras para considerá-las belas e interessantes é uma forma de reduzí-las a meros acessórios. Mulheres negras não são exóticas, simplesmente porque seres humanos não podem ser exóticos. Qualquer tentativa de separar grupos de pessoas entre “convencionais” e “excêntricos” com base em suas expressões culturais e características físicas é etnocentrismo e racismo. O fato de que mulheres negras ainda precisam ser consideradas diferentes para serem vistas como atraentes é evidência de uma cultura contaminada pelo racismo institucional, onde ser negra significa não ter qualquer chance contra mulheres brancas.

Essa violência passa frequentemente despercebida, disfarçada em forma de elogios que enfatizam a suposta “excentricidade” da mulher negra. No entanto, enquanto muitas pessoas encaram esse tipo de expressão como uma forma de apreciação às diferenças, para as mulheres negras, que batalham arduamente para conquistar espaço na sociedade, ser considerada uma “beleza exótica” não é elogio, mas sim uma forma de segregação e exotificação racial. Mulheres negras não deveriam ser consideradas um “sabor” ou “variedade” diferente de mulher, mas sim seres humanos completos e plenos, capazes de existir, se expressar e transformar o mundo à sua volta.

Na luta pela igualdade racial, é imprescindível lembrar das sutilezas da cultura e da forma que ela opera para perpetuar valores racistas. Não basta tirar as mulheres negras do limbo de rejeição e se contentar com máscaras de falsa admiração; não adianta trocar a imposição do alisamento do cabelo crespo pelas passadas de mão intrometidas nos cabelos naturais. Exaltar a beleza negra como algo exótico e consumível não resolve o problema do padrão de beleza branco. Para combater o racismo, é necessário muito mais do que transformar a mulher negra em fetiche.

Jarid Arraes é educadora sexual, especialista em sex toys, escreve no Mulher Dialética e no Guia Erógeno.

terça-feira, 23 de julho de 2013

DICA DE FILMES QUE ABORDAM A SEXUALIDADE

Filmes que abordam com temática a sexualidade  e gênero, e podem serem trabalhado com os alunos.


FILMES/VIDEOS:



1. MIlK - A voz da igualdade é uma história real dos anos 70. Narra a vida de Harvey Milk (Sean Penn) com seu namorado Scott (James Franco). Quando se mudam para San Francisco, numa época repleta de preconceitos, eles enfrentam a violência e a discriminação sexual. (MILK. Direção: Gus Van Sant. Estados Unidos: Paramount Pictures/UIP, 2008. 1 DVD (128 min.) son. color., legendado em português).



2. PRISCIllA, a rainha do deserto conta a história de duas drag queens e um transexual que viajam para fazer um show. Eles partem de Sydney a bordo de Priscilla, um ônibus muito especial, e enfrentam o deserto australiano. Quando chegam a seu destino, após sofrer as agruras da viagem, descobrem que quem contratou o show foi a ex-mulher de um deles. (PRISCILLA. Direção: Stephan Elliott. Estados Unidos, 1994. 1 DVD (104 min.) son. color., legendado em português). 


3. LATTER DAYS – Christian tem 20 e poucos anos, vive em um condomínio em Los Angeles e adora curtir a noite. Suas conquistas sexuais são apenas para uma noitada. Elder Aaron Davis chega à cidade com três missionários mórmons para se hospedar no mesmo condomínio de Chris. Mundos antagônicos irão se chocar, trazendo graves consequências para ambos. (Latter days. Direção: C. Jay Cox. Estados Unidos: TLA Releasing, 2003. 1 DVD (107 min.) son. color., legendado em português.) 




4. TRANSAMÉRICA: um homem prestes a fazer a cirurgia de mudança de sexo descobre que possui um filho e que este quer conhecê-lo. Em uma longa viagem, tentarão descobrir um ao outro. (TRANSAMÉRICA. Direção: Duncan Tucker. Estados Unidos: IFC Films, 2005. 1 DVD (103 min) son. cor. legendado em português). 




5. MINHA VIDA EM COR-DE-ROSA: relata a história de Ludovic, um menino que acredita ter nascido no corpo errado. Lutando para ser reconhecido como uma menina, ele despertará o mal-estar dos vizinhos, que começam a fazê-lo passar por muitos sofrimentos. (Minha vida em cor-de-rosa. Direção: Alain Berliner. França/Bélgica/Inglaterra: Sony, 1998. 1 DVD (88 min.) son. color., legendado em português).



6.QUERELLE (1982) – Direção: Rainer Werner Fassbinder
O marujo francês Querelle chega a Brest e frequenta um estranho bordel. Logo descobre que seu irmão Robert é amante da dona do lugar, Lysiane. ”Aqui você pode jogar dados com Nono, o marido de Lysiane: se você ganhar, pode fazer amor com ela; se perder terá que fazer amor com Nono…”. Querelle perde de propósito.


7. WEEKEND (2011) – Direção: Andrew Haigh
Depois de sair para jantar com seus amigos héteros, Russell decide tentar a sorte numa boate gay. Ele sai de lá com Glen e os dois passam a noite juntos. Na manhã seguinte, Glen pede para gravar um depoimento de Russell sobre a noite anterior, dando início assim a uma intimidade inesperada entre os dois.



8.ASSUNTO DE MENINAS (2001) – Direção: Léa Pool
Ainda abalada pela perda da mãe, que morreu há 3 anos de câncer, a bela e sensível Mary Bradford (Mischa Barton) não consegue se comunicar com o pai e a madrasta. Alheios aos problemas emocionais dela, eles a enviam para um internato feminino. A recepção das novas colegas é ótima e ela é instalada no quarto das lindas Paulie Oster (Piper Perabo) e Tory Moller (Jessica Paré). Aos olhos dos outros Paulie e Tory boas amigas, mas em seus corações elas são amantes ardentes.



9.C.R.A.Z.Y. – Loucos de Amor (2005) – Direção: Jean-Marc Vallée
No dia 25 de dezembro de 1960, Zachary Beaulieu vem ao mundo. É o 4º entre 5 irmãos, todos meninos. A infância de Zachary é marcada pelos aniversários natalinos em que seu pai (Michel Côté), invariavelmente, encerra a festa imitando Charles Aznavour. Sua adolescência traz a descoberta de uma sexualidade diferente e sua negação profunda para não decepcionar a família.


10.EU NÃO QUERO VOLTAR SOZINHO (2010) – Direção: Daniel Ribeiro
A vida de Leonardo, um adolescente cego, muda totalmente com a chegada de um novo aluno em sua escola. Ao mesmo tempo, ele tem que lidar com os ciúmes da amiga Giovana, e entender os sentimentos despertados pelo novo amigo Gabriel.



11.ECLIPSE DE UMA PAIXÃO (1995) – Direção: Agnieszka HollandArthur Rimbaud (Leonardo DiCaprio), “o poeta dos sentidos”, como ficou conhecido, revolucionou a poesia do final do século XIX e continua influenciando escritores e surpreendendo leitores até hoje. O filme foca o turbulento período de produção literária de Rimbaud, que coincide com o tempo em que viveu apadrinhado por outro grande poeta, Paul Verlaine (David Thewlis). Mas a admiração de um escritor pelo outro vai além, faz com que ambos de apaixonem.



12. EU MATEI MINHA MÃE (2009) – Direção: Xavier Dolan
Hubert Minel é um jovem impetuoso de 17 anos que não gosta nem um pouco de sua mãe. Ele despreza suas roupas bregas, o estilo kitsch e as migalhas de pão que sempre ficam no canto de sua boca. Além desses traços, a relação dos dois é pautada pela manipulação e a culpa. Confuso e dividido por uma relação de amor e ódio que o deixa cada dia mais obcecado, o garoto vive uma adolescência que é ao mesmo tempo típica e marginal, marcada por novas experiências artísticas, amizades, sexo e abandono.



13.MENINOS NÃO CHORAM (1999) – Direção: Kimberly Peirce
Saiba como Teena Brandon se tornou Brandon Teena e passou a reivindicar uma nova identidade, masculina, numa cidade rural de Falls City, Nebraska. Brandon inicialmente consegue criar uma imagem masculinizada de si mesma, se apaixonando pela garota com quem sai, Lana, e se tornando amigo de John e Tom. Entretanto, quando a identidade sexual de Brandon vem à público, a revelação ativa uma espiral crescente de violência na cidade.


14.GAROTOS DE PROGRAMA (1991) – Direção: Gus Van Sant
River Phoenix e Keanu Reeves são as estrelas desta impressionante história do diretor Gus Van Sant (“Gênio Indomável”) a respeito de dois jovens garotos de programa que ganham a vida nas ruas. Mike Waters é um sensível narcoléptico que sonha com a mãe que o abandonou enquanto vive às voltas com Scott Favor, obstinado filho do prefeito de Portland e seu grande objeto de desejo.


15. MISTÉRIOS DA CARNE (2004) – Direção: Gregg Araki
Aos 8 anos, Brian Lackey (Brady Corbet) acordou do lado de fora de sua casa com o nariz sangrando, sem ter idéia de como tinha chegado lá. Depois do incidente ele nunca mais foi o mesmo: tem medo do escuro, urina na cama e é assombrado por pesadelos. Agora, aos 18 anos, ele acredita ter sido abduzido por alienígenas. Neil McComick (Joseph Gordon-Levitt), também de 18 anos, é um adorável forasteiro, o rapaz que todos admiram a distância. Quando seus caminhos se cruzam, eles descobrem que as memórias mais importantes de suas vidas não são o que parecem.



16. AS VANTAGENS DE SER INVISÍVEL (2012) – Direção: Stephen Chbosky
A história é narrada por um adolescente tímido e impopular que descreve a sua vida em uma série de cartas para uma pessoa anônima e explora as fases difíceis da adolescência, incluindo o uso de drogas e sexualidade.


17.UM QUARTO EM ROMA (2010) – Direção: Julio Medem
As jovens Alba e Natasha se conhecem ao acaso em uma noite do verão de 2008 em Roma, onde passam doze horas juntas em um quarto de hotel. A princípio resistentes a qualquer tentativa de aproximação, temendo pôr em risco os relacionamentos reais que cultivam no exterior desse microcosmo, as duas acabam cedendo a seus instintos mais inesperados, numa entrega apaixonada a uma liberdade que nunca experimentaram.



18. TOMBOY (2011) – Direção: Céline Sciamma
“Tomboy” é a denominação dada para meninas que gostam de agir como meninos. Laure é uma menina de dez anos, que muda de casa constantemente, em decorrência do trabalho do pai. Ao ir para uma nova residência ainda nas férias, ela faz amizade com uma grande turma de garotos da vizinhança, mas se apresenta como Mikael. Isso faz com que ela se aproxime de Lisa, a única menina do grupo.




19 - XXY (2007) – Direção: Lucía Puenzo
Alex (Inés Efron) nasceu com ambas as características sexuais. Tentando fugir dos médicos que desejam corrigir a ambiguidade genital da criança, seus pais a levam para um vilarejo no Uruguai. Eles estão convencidos de que uma cirurgia deste tipo seria uma violência ao corpo de Alex e, com isso, vivem isolados numa casa nas dunas. Até que, um dia, a família recebe a visita de um casal de amigos, que leva consigo o filho adolescente. É quando Alex, que está com 15 anos, e o jovem, de 16, sentem-se atraídos um pelo outro.




20 - Má Educação (2004) – Direção: Pedro Almodóvar
Madri, 1980. Enrique Goded (Fele Martínez) é um cineasta que passa por um bloqueio criativo e está tendo problemas em elaborar um novo projeto. É quando se aproxima dele um ator que procura trabalho, se identificando como Ignacio Rodriguez (Gael García Bernal), que foi o amigo mais íntimo de Enrique e também o primeiro amor da sua vida, quando ainda eram garotos e estudavam no mesmo colégio.





21 - Amigas de Colégio (1998) – Direção: Lukas Moodysson
O filme conta a história de uma adolescente, Agnes, que se mudou com a família para uma pequena cidade sueca chamada Amal, o lugar mais chato da terra, segundo ela mesma. Agnes não consegue fazer amigos no colégio e sua companheira na sala é uma garota que vive em uma cadeira de rodas. Para complicar ainda mais as coisas, ela está apaixonada por Elin, uma garota do colégio, porém o único a saber desta paixão é seu computador, onde ela faz todas as suas anotações. No dia de seu aniversário, Agnes não percebe que a irmã mais velha de Elin descobre suas anotações e faz uma aposta com a irmã: se ela deixar Agnes beijá-la, pagará à irmã 20 cronas.





sexta-feira, 19 de julho de 2013

Ser gay é pecado?



Um grupo influente de religiosos católicos e protestantes opõe-se à onda conservadora e defende que a Bíblia não condena o homossexualismo 



A representação de São Sérgio e São Baco, símbolos da causa LGBT




Em seu programa de tevê e nos cultos, o pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus, um dos maiores porta-vozes do conservadorismo religioso no País, costuma repetir a ladainha: “Homossexualidade na Bíblia é pecado. Pode tentar, forçar, mas é pecado”. Mas será mesmo pecado ser gay? Não, contestam, baseados na interpretação da mesma Bíblia, sacerdotes cristãos, tanto católicos quanto evangélicos. Para eles, a mensagem de Jesus era de inclusão: se fosse hoje que viesse à Terra, o filho de Deus teria recebido os homossexuais de braços abertos.

“Orientação sexual não é o que vai definir a nossa salvação”, afirma o bispo primaz da Igreja Anglicana no Brasil, dom Maurício Andrade. “É muito provável que as pessoas homoafetivas fossem acolhidas por Jesus. O Evangelho que ele pregou foi de contracultura e inclusão dos marginalizados”, opina. Segundo o bispo, ao mesmo tempo que não há nenhuma menção à homossexualidade no Novo Testamento, há várias passagens que demonstram a pregação de Jesus pela inclusão. Não só o conhecido “quem nunca pecou que atire a primeira pedra” à adúltera Maria Madalena.

No Evangelho de João, capítulo 4, Jesus está a caminho da Galileia, partindo de Jerusalém. Cansado, decide descansar ao lado de um velho poço, em plena região da Samaria, cujos habitantes eram desprezados pelos judeus. E inicia conversação com uma mulher samaritana que vinha buscar água, e lhe oferece a salvação da alma, para espanto de seus próprios apóstolos, que a consideravam ímpia. Também quando Jesus vai à casa de Zaqueu, o coletor de impostos decidido a passar a noite lá, os discípulos murmuram entre si que se hospedaria “com homem pecador”. Mas Jesus não só o faz como também oferece a Zaqueu, homem rico tido como ladrão, a salvação. “Hoje veio a salvação a esta casa, por este ser também filho de Abraão.”

“Jesus inaugura o momento da Graça, os Evangelhos atualizam vários trechos do Velho Testamento. Ou alguém pode imaginar apedrejar pessoas hoje em dia?”, questiona dom Maurício, para quem a interpretação da Bíblia deve se basear no tripé tradição, razão e experiência cotidiana. “Quem interpreta que a Bíblia condena a homoafetividade está sendo literalista. Cada texto bíblico está inserido num contexto político, histórico e cultural, não pode ser transportado automaticamente para os dias de hoje. Além disso, a Igreja tem de dar resposta aos anseios da sociedade, senão estaremos falando com nós mesmos.”

Também anglicano, o arcebispo Desmond Tutu, Prêmio Nobel da Paz em 1984, lançou em março deste ano o livro Deus Não É Cristão e Outras Provocações, que traz um texto sobre a inclusão dos cidadãos LGBT à Igreja e à sociedade. Para Tutu, a perseguição contra os homossexuais é uma das maiores injustiças do mundo atual, comparável ao apartheid contra o qual lutou na África do Sul. “O Jesus que adoro provavelmente não colabora com os que vilipendiam e perseguem uma minoria já oprimida”, escreveu. “Todo ser humano é precioso. Somos todos parte da família de Deus. Mas no mundo inteiro, lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros são perseguidos. Nós os tratamos como párias e os fazemos duvidar que também sejam filhos de Deus. Uma blasfêmia: nós os culpamos pelo que são.”

Nos Estados Unidos, a Igreja Anglicana foi a primeira a ordenar um bispo homossexual, em 2004. “Não por ser gay, mas porque a Igreja reconheceu o serviço e o ministério dele”, alerta dom Maurício. Foi com base na demanda crescente de respostas por parte dos fiéis homossexuais ou com -parentes e amigos gays que os anglicanos começaram a rever suas posturas, a partir de 1997. No ano seguinte, foi feita uma recomendação para que os homoafetivos fossem escutados, embora a união de pessoas do mesmo sexo ainda fosse condenada e que se rejeitasse a prática homossexual como “incompatível” com as Escrituras.

No Brasil, onde possui mais de 60 mil seguidores, a Igreja Episcopal Anglicana realizou em 2001 a primeira consulta nacional sobre sexualidade, quando seus fiéis decidiram rejeitar “o princípio da exclusão, implícito na ética do pecado e da impureza”, e fazer uma declaração pública em favor da inclusividade como “essência do ministério encarnado de Jesus”. Em maio deste ano, os anglicanos divulgaram uma carta de apoio à decisão do Supremo Tribunal Federal de permitir a união civil entre pessoas do mesmo sexo, baseados não só na defesa da separação entre Estado e Igreja como no reconhecimento de que as relações homoafetivas “são parte do jeito de ser da sociedade e do ser humano”.

Com o reconhecimento pelo Superior Tribunal de Justiça, em 25 de outubro, da união civil de duas lésbicas, é possível que a intolerância religiosa contra os homossexuais volte a se acirrar. No Twitter, Malafaia atiçava os seguidores a enviar e-mails aos juízes do Tribunal pedindo a rejeição do recurso. Em vão: a união entre as duas mulheres gaúchas, juntas há cinco anos, ganhou por 4 votos a 1.

A partir da primeira decisão do STF, foi criada, informalmente até agora, uma frente religiosa pela diversidade sexual, que reúne integrantes de diversas igrejas: batistas, metodistas, anglicanos, luteranos, presbiterianos, católicos e pentecostais. Coordenador do grupo, o metodista Anivaldo Padilha (pai do ministro da Saúde, Alexandre Padilha) diz que a homossexualidade é hoje um dos temas que mais dividem as igrejas, tanto evangélicas quanto católicas. “Quem alimenta o preconceito são as lideranças. Os fiéis manifestam dificuldade em obter respostas, porque no convívio com amigos, colegas ou mesmo parentes que sejam homossexuais não veem diferença.”

Mais: segundo Padilha, a proporção de homossexuais entre os evangélicos é bastante similar à da sociedade brasileira como um todo. Sua convicção vem da pesquisa O Crente e o Sexo, do Bureau de Pesquisa e Estatística Cristã, entidade que possui o maior banco de dados com e-mails de evangélicos brasileiros – mais de 1,6 milhão. Na pesquisa, foram ouvidos pela internet 6.721 solteiros evangélicos de todo o País, entre 16 e 60 anos. Os resultados, divulgados em junho deste ano: 5,02% dos evangélicos tiveram uma experiência homossexual e 10,69% disseram desejar experimentar ter relações com pessoas do mesmo sexo.

Uma pesquisa feita em 2009 pelo Ministério da Saúde com os brasileiros em geral apontou que 7,6% das pessoas- entre 15 e 64 anos haviam tido relações com o mesmo sexo na vida. Quer dizer, a diferença entre os hábitos sexuais dos crentes e do resto da população é quase nula. “A questão não é teológica”, argumenta Padilha. “O que existe é que esse tema tem sido utilizado politicamente pela direita brasileira. Como não existe mais o comunismo, conseguem manipular a opinião pública assim. Eles têm o direito de expressar opiniões, mas não se pode impor ao Estado conceitos de pecado que não dizem respeito aos que professam outras religiões, ou nenhuma.”

De acordo com historiadores, a posição religiosa em relação à homossexualidade mudou ao longo dos séculos: de mais tolerante para menos. O americano John Boswell, pesquisador da Universidade Yale que morreu de Aids- aos 47 anos em 1994 e que dedicou a vida acadêmica a investigar a homossexualidade relacionada ao cristianismo, afirmava que a Igreja Católica não condenou as relações entre o mesmo sexo até o século XII. Ao contrário: o historiador, contestado por alguns e aclamado por outros, revelou no livro O Casamento entre Semelhantes – Uniões entre pessoas do mesmo sexo na Europa pré-moderna (1994) a existência de manuscritos que comprovam a celebração de rituais matrimoniais religiosos durante toda a Idade Média por sacerdotes católicos e ortodoxos para consagrar uniões homossexuais.

Nos 80 manuscritos descobertos por Boswell sobre as bodas gays entre os primeiros cristãos, invocava-se como protetores os santos católicos Sérgio e Baco, tidos como homossexuais. Celebrados no dia 7 de outubro, São Sérgio e São Baco aparecem juntos em toda a iconografia religiosa a partir do século IV depois de Cristo e atualmente são objeto de homenagem de vários artistas plásticos ligados ao movimento LGBT. Soldados do imperador romano Maximiano, foram ambos martirizados por se recusar a entrar em um templo e adorar Júpiter. Baco, flagelado com chicotadas, morreu primeiro. Uma crônica, provavelmente do século- X, conta que Sérgio “com o coração enfermo pela perda de Baco, chorava e gritava: ‘te separaram de mim, foste ao Céu e me deixaste só na Terra, sem companhia nem consolo’”.

Em fevereiro deste ano, o pesquisador e professor de Literatura Carlos Callón, da Universidade de Santiago de Compostela, na Espanha, foi premiado pelo ensaio Amigos e Sodomitas: A configuração da homossexualidade na Idade Média, onde conta a história de Pedro Díaz e Muño Vandilaz, protagonistas do primeiro matrimônio homossexual da Galícia, em 16 de abril de 1061. No documento, o casal compromete-se a morar juntos e se cuidar mutuamente “todos os dias e todas as noites, para sempre”. Segundo Callón, há muitos relatos semelhantes, inclusive com rituais religiosos similares aos heterossexuais, com a diferença de que as bênçãos faziam alusão ao salmo 133 (“Oh! Como é bom e agradável viverem unidos os irmãos”), ao amor de Jesus e João ou a São Sérgio e São Baco.

“Trato também na pesquisa de como na lírica ou na prosa galego-portuguesa medievais aparecem alguns exemplos de relações entre homens”, diz o professor. “As relações homossexuais são documentáveis em todas as épocas, o que houve foi um processo de adulteração, de falsificação da história, para nos fazer pensar que não.” Outro dado importante ressaltado pelo pesquisador é que a perseguição contra os homossexuais vem originalmente do Estado. Só mais tarde a Igreja se converteria na principal fonte do preconceito.

“Os traços básicos do preconceito contra a homossexualidade tiveram sua origem na Baixa Idade Média, entre os séculos XI e XIV. É nessa altura que emerge a intolerância homofóbica, desconhecida na Antiguidade. Inventa-se o pecado da sodomia, inexistente nos mil primeiros anos do cristianismo, a englobar todo o sexo não reprodutivo, mas tendo como principal expoente as relações entre homens ou entre mulheres. Com o tempo, passará a ser o seu único significado”, explica Callón.

De fato, a palavra “sodomia” para designar o coito anal em geral e as relações homossexuais em particular, e ao que tudo indica foi introduzida na Bíblia por seu primeiro tradutor ao inglês, o britânico John Wycliffe (1320-1384). Wycliffe traduziu o termo grego arsenokoitai como “pecado de Sodoma”. Daí a utilização da palavra “sodomita” para designar os gays, o que acabou veiculando-os para sempre com o relato bíblico das pecadoras cidades de Sodoma e Gomorra, destruídas por Deus com fogo e enxofre para punir a imoralidade de seus habitantes. Mas o significado real de arsenokoitai (literalmente, a junção das palavras “macho” e “cama”) é ainda hoje alvo de controvérsia.

O próprio termo “homossexual” para designar as pessoas que preferem se relacionar com outras do mesmo sexo é recente: só passou a existir a partir do século XIX. A versão revisada em inglês da Bíblia, de 1946, é a primeira a utilizá-lo. Isto significa que as menções à “homossexualidade”, “sodomia” e “sodomitas” nas escrituras seriam mais uma questão de interpretação do que propriamente de tradução.

“A Bíblia, infelizmente, tem sido usada para defender quaisquer posicionamentos, desde a escravidão (sobram textos que legitimam a escravatura) ao genocídio”, opina o pastor Ricardo Gondim, da Igreja Betesda de São Paulo, protestante. “Como o sexo é uma pulsão fundamental da existência, o controle sobre essa pulsão mantém um fascínio enorme sobre quem procura preservar o poder. Assim, o celibato católico e a rígida norma puritana não passam de mecanismos de controle. O uso casuístico das Escrituras na defesa de posturas consideradas conservadoras ou ‘ortodoxas’ não passam, como dizia Michel Foucault, de instrumentos de dominação.”

“Um teólogo que eu admiro muito, Carlos Mesters, costuma dizer que a Bíblia é uma flor sem defesa. Dependendo da mão e da intencionalidade de quem a usa, a posição mais castradora ou a mais libertadora pode ser defendida usando-a”, concorda a pastora Odja Barros, presidente da Aliança de Batistas do Brasil, espécie de dissidência da Igreja Batista que aceita homossexuais entre seus integrantes – são seis igrejas no País. Tudo começou há cinco anos, conta Odja, quando se colocou diante de sua igreja, em Maceió, o desafio: um homossexual converteu-se e não queria abrir mão de seu gênero. Foi uma pequena revolução. Alguns integrantes deixaram a Igreja, outros se juntaram a ela, e houve fiéis que, animados, também resolveram se revelar homossexuais. “Em todas as comunidades evangélicas existem gays, mas são reprimidos”, afirma a pastora.

Um dos pontos principais para a compreensão da questão à luz da Bíblia, de acordo com Odja Barros, é desconstruir as leituras mais hegemônicas, patriarcais, que afetam a vida não só dos gays, como das mulheres. Há trechos, por exemplo, que justificam a submissão e a violência contra a mulher. A própria Odja só se tornou pastora graças a essa releitura. “As pessoas vêm me dizer que sou feminista, que sou moderna, mas me sinto muito fiel a algo -muito -antigo, que é a defesa da dignidade do ser humano sobre todas as coisas. O Evangelho tem a ver com esses valores”, argumenta. “A sociedade caminhou mais rápido e é um desafio à Igreja, quando deveria ser o contrário.”

Entre os católicos, curiosamente, a homossexualidade não é vetada a partir da Bíblia, mas a partir da concepção de que seria antinatural, ou seja, fora do objetivo da procriação. É assim, até hoje, que prega a Igreja, daí a condenação também ao uso de contraceptivos como a camisinha. Tudo isso vem de uma época em que se conhecia muito pouco de biologia. A descoberta do clitóris como fonte do prazer feminino, por exemplo, é do século XVI. O ovário, que sacramentou a diferença entre homem e mulher, só foi descoberto no século XVIII. Até então, pensava-se que a mulher era um homem em desvantagem, um corpo masculino “castrado”.

“Além disso, hoje temos conhecimento de uma gama impressionante de comportamentos sexuais entre os animais, o que inclui homossexualidade e hermafroditismo”, defende o padre católico James Alison, britânico radicado em São Paulo. Homossexual assumido, Alison conta que se situa numa espécie de “buraco negro” em que se encontram, segundo ele, muitos padres católicos gays: sem função como párocos, não estão subordinados a bispos e, por isso mesmo, escapam de sanções da Igreja. O padre, que vive como teólogo, compara a homossexualidade a ser canhoto. Ou seja, um porcentual- da população nasceria -homossexual, assim como nascem pessoas que escrevem com a mão esquerda. “Aproximadamente 9,5% das pessoas são canhotas e isso também já foi considerado uma patologia.”

Alison conta que a Igreja Católica faz um malabarismo ideológico para sustentar a proibição de ser homossexual-, pois no ensino teológico do Vaticano o fato em si não é considerado pecado. “Eles dizem que ‘enquanto a inclinação homossexual não seja em si um pecado, é uma tendência para atos intrinsecamente maus’, uma coisa confusa e insustentável a essa altura.” O padre acredita, porém, que a aceitação da homossexualidade pelos católicos melhorou sob Bento XVI. “Neste tema, os prudentes calam e os burros gritam. João Paulo II promovia os gritões. Hoje a tendência é prudência. Já não se veem bispos falando publicamente que é uma patologia. Se a Igreja reconhecer que não há patologia, será natural reconhecer a homossexualidade. É um lado bom de Ratzinger, mas tudo isso ocorre caladamente, nos bastidores da Igreja.”

Para o padre, a falta de discussão no catolicismo sobre a homossexualidade “emburreceu” as pessoas para o debate em torno da pedofilia, que tanto tem causado danos à imagem da Igreja nos últimos anos. Daí a reação lenta diante das denúncias. E também se tornou um obstáculo à evangelização. “A homofobia instintiva já não é mais realidade, há cada vez mais solidariedade fraterna concreta. Muitos jovens são por natureza gay friendly. E se perguntam: por que seguir Jesus se tenho de odiar os gays?”