segunda-feira, 26 de agosto de 2013

“A escola ainda é um espaço homofóbico e transfóbico”, diz Marina Reidel


Marina defendeu na semana passada sua dissertação de mestrado, intitulada “A pedagogia do salto alto – Histórias de professoras transexuais e travestis na Educação Brasileira” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Débora Fogliatto e Samir Oliveira

Marina Reidel é a primeira mulher transexual a conquistar o título de Mestre pela Faculdade de Educação da UFRGS. A professora defendeu sua dissertação na sexta-feira (23), em Porto Alegre, diante de um auditório lotado de acadêmicos, autoridades e ativistas da comunidade LGBT.

Intitulada “A pedagogia do salto alto – Histórias de professoras transexuais e travestis na Educação Brasileira”, a pesquisa estuda a inserção de sete professoras trans em escolas de diferentes regiões do país.

Nesta entrevista ao Sul21, Marina Reidel comenta sobre a realização do seu trabalho e afirma que a escola é um ambiente homofóbico e transfóbico que precisa se reinventar. Ela conta que o maior desafio enfrentado pelas professoras trans vem justamente do preconceito de seus colegas professores – e não de pais ou alunos da comunidade escolar. “Os professores ainda não estão preparados para lidar com essas questões”, lamenta.

Marina Reidel é natural de Montenegro. Licenciada em Artes Visuais, com pós-graduação em Psicopedagogia, ela trabalhou com alfabetização e educação infantil durante dez anos. Atualmente, ainda trabalha como professora de Artes na Fundarte, em Montenegro. Também é assessoria da Coordenadoria da Diversidade da prefeitura de Canoas.
“Quando eu me transformei, achei que era a única professora trans do país. Mas existiam outras e eu comecei a conhecê-las”


Sul21 – Como iniciou a tua trajetória na área da educação?
Marina Reidel – Sou natural de Montenegro e sou professora há 23 anos – 10 anos enquanto professora transexual. Atualmente, sou professora de Artes da Fundarte, em Montenegro, onde atuo há 20 anos. Foi lá que eu passei pelo processo de transformação, assim como na Escola Estadual Rio de Janeiro, em Porto Alegre. Eu já saí da escola Rio de Janeiro, mas continuo trabalhando em Montenegro como professora de Artes Visuais. Dentro do projeto de ações comunitárias da Fundarte, atuo numa vila carente com crianças pequenas, de 7 a 10 anos. Elas me chamam de “professora pinheirinho”, porque estou sempre cheia de colares. Também atuo como arte-terapeuta dentro de um Centro de Atendimento Psicossocial (CAPS).

Marina: “Quando fiz minha transformação, comecei a circular mais no mundo trans e no mundo LGBT. Comecei a ficar mais ativista” | Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – E como foi a aceitação, nestes ambientes profissionais, do teu processo de transformação?
Marina - Nunca tive nenhum problema ou questionamento dentro desses projetos. Fui convidada a ir na escola e a diretora me colocou na frente de 100 alunos e disse: “agora perguntem tudo o que querem saber da professora Marina, porque depois não quero saber de fofoca”. E então começaram a perguntar coisas bobas, se eu era casada, se tinha cachorro… Ninguém perguntava sobre as questões que eu sabia que eles tinham curiosidade. E então algum aluno mencionou que estão estudando borboletas, e eu disse: “agora vai começar a minha aula”. Aí falei sobre toda a história do casulo que vira borboleta. Hoje chego lá e eles vêm, me abraçam, me beijam, não têm problema nenhum.

Sul21 – O ambiente escolar lidou bem com essa mudança?
Marina - Foi todo um repensar. A escola repensou, assim como a própria Fundarte. Foi tranquilo, mas sempre se espera o pior. Até por ser uma cidade do interior. Não fui expulsa de lá, porque não havia assumido publicamente a minha identidade de gênero. Eu saí de lá como “homenzinho”, de calça jeans e camiseta, e retornei no salto. Mas foi tranquilo, não houve nenhum problema. Claro que as pessoas sabiam, a direção da escola sabia. Houve toda uma construção para “preparar o campo”. Quando eu retornei os alunos já sabiam desse processo. Houve uma repercussão e uma expectativa dos alunos de como eu retornaria. Mas não houve nenhum questionamento de pais nem de alunos.

Sul21 – Como tu chegaste ao tema da tua pesquisa de mestrado?
Marina - Quando fiz minha transformação, comecei a circular mais no mundo trans e no mundo LGBT. Comecei a ficar mais ativista. Dentro do movimento, tivemos a ideia de criar uma rede de professores transexuais e travestis no Brasil. Quando eu me transformei, achei que era a única professora trans do país. Mas existiam outras e eu comecei a conhecê-las dentro dessa perspectiva. Quando fiz a prova do mestrado, a minha ideia era envolver essas pessoas. Talvez para dar mais visibilidade, mostrar que elas existem e que as trans não estão só nas calçadas. Não sou contra a prostituição, pelo contrário, tenho respeito. É o único caminho que muitas têm em um país como o nosso, onde as pessoas não abrem as portas para travestis e trans trabalharem. Ou elas fazem um concurso público, ou são cabeleireiras, ou fazem enfermagem, ou são profissionais do sexo.
“No Rio Grande do Sul já encontrei 12 professoras trans e um professor trans. É o estado onde mais encontrei professoras trans”


Sul21 – A licenciatura tem sido uma nova escolha profissional para trans e travestis?
Marina - Comecei a me dar conta que essas pessoas estavam em outros espaços, inclusive na escola. Quando entrei no mestrado, comecei a pesquisar e mapear essas pessoas junto à Rede Trans Educ Brasil. Na época, eram 40 professoras. Hoje existem mais de 80. Existem até trans que são diretoras de escola.

Professora viu no salto alto uma metáfora unindo trans e travestis: “Eu mesmo, quando ia para a escola, os alunos identificavam passando pelos corredores” | Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Como foi o contato com essas professoras?
Marina – Eu entrevistava as professoras nos eventos do movimento trans e do movimento LGBT. Encontrei também gestoras em secretarias de educação; professoras de escola; diretoras… Algumas têm profissões paralelas, mas continuam sendo professoras. Elas não estão só dentro da sala de aula, estão em outros espaços significativos, como secretarias de educação.

Sul21 – Como surgiu a ideia da “Pedagogia do Salto Alto”?
Marina – Quando entrei no mestrado e propus o tema, o meu orientador achou excelente a ideia de buscar as professoras, de ver outras histórias. Criei essa metáfora da “pedagogia do salto alto”, e ele achou excelente. Toda trans e travesti adora um salto alto. Comecei a perceber que essa metáfora poderia provocar algumas questões. Eu mesma, quando ia de salto para a escola Rio de Janeiro, os alunos já brincavam e me identificavam passando pelos corredores.

Sul21 – A tua pesquisa envolveu somente trans mulheres?
Marina – Quando eu comecei a mapear, só encontrava professoras trans mulheres. Depois, quando já estava com a pesquisa quase pronta, encontrei alguns professores trans homens. Um no Rio de Janeiro e outro aqui em Porto Alegre. Eles ainda são um número mais reduzido.

Sul21 – Quantas pessoas estão incluídas na pesquisa e de que regiões do país?
Marina – Oficialmente, entrevistei sete professoras trans das regiões Nordeste, Sudeste, Sul e Centro-Oeste. Mas já mapeei de norte a sul do país. No Rio Grande do Sul já encontrei 12 professoras trans e um professor trans. É o estado onde mais encontrei professoras trans. No Paraná e em Minas Gerais também existem muitas. Em termos de cidade, elas estão bem espalhadas. Existem professoras trans na fronteira gaúcha com o Uruguai e em grandes cidades, como Rio de Janeiro e São Paulo. Também encontrei professoras trans no Sertão do Nordeste. Em Belém, no Pará, encontrei duas professoras transexuais que são irmãs e fazem matemática.
“Todas mostraram, também, que foi na família onde enfrentaram os maiores problemas, principalmente em relação à figura paterna”


Sul21 – E como foram os relatos das histórias de vida das pessoas que tu entrevistaste?
Marina – As histórias de vida vão desde a infância até o momento em que eu as entrevistei. Todas passaram pela questão de terem a expressão de gênero feminina na infância. De querer brincar de casinha, de boneca, enfim, com elementos associados ao feminino e à maternidade. Todas mostraram, também, que foi na família onde enfrentaram os maiores problemas, principalmente em relação à figura paterna. Tem pais que passaram dez anos sem falar com a filha por não aceitar. Outra menina teve que esperar seu pai desenvolver uma doença grave, como Alzheimer, para poder se assumir – já que ele não era mais capaz de identificá-la. E teve uma mãe que colocou fogo nas roupas femininas da filha ao descobrir que ela era trans. Aconteceram as coisas mais absurdas com essas pessoas. Teve uma menina que foi expulsa de casa com 13 anos. Esse é o mundo trans, é o mundo em que vivemos. As meninas são expulsas de casa muito cedo e fogem da escola. O interessante nas professoras trans é que elas lutaram para permanecer estudando. Muitas tiveram que se esconder no armário por muito tempo.

“Esse é o mundo trans, é o mundo em que vivemos. As meninas são expulsas de casa muito cedo e fogem da escola” | Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – E que tipo de dificuldade essas mulheres encontram no ambiente escolar?
Marina – Identifiquei na pesquisa que elas não sofreram nenhum tipo de agressão por parte de alunos e pais na comunidade escolar. O problema foi com os colegas professores e as direções. A escola ainda é um espaço homofóbico e transfóbico. Os professores ainda não estão preparados para lidar com essas questões. Eles não foram preparados para isso porque as universidades não trabalham essas questões. Hoje em dia ainda existem algumas discussões, mas quando eu concluí minha formação, há 12 anos, jamais esse assunto era abordado.

Sul21 – E a relação dessas professoras com os alunos e pais?
Marina – A partir do momento em que elas ingressam neste espaço chamado escola, começam a se tornar um referencial. Lembro do meu tempo como professora, quando eu cheguei na escola no salto, toda montada. Primeiro surgiu aquele auê, aquele burburinho. Nas primeiras aulas, obviamente tive que falar sobre isso. Os alunos perguntam bastante, principalmente os adolescentes, que são mais curiosos. É preciso ter jogo de cintura para saber até onde é possível lidar com essas questões. Tu começas a perceber, neste processo, que os alunos também começam a te contar certas coisas que dizem respeito à sexualidade deles. Lembro que uma aluna me contou que estava grávida, quando não tinha nem contado para a mãe dela. Então eles compartilham suas histórias, expõem suas dúvidas. É o momento que eles têm para falar. O professor não pode abrir mão disso. Todas as professoras trans contaram que são um referencial para os alunos. Isso gera a situação na escola em que tu és solicitada o tempo inteiro para tentar resolver os problemas de homofobia e preconceito.

Sul21 – A presença de professoras trans pode contribuir para diminuir a homofobia, transfobia e outros preconceitos nas escolas?
Marina – Com certeza. O preconceito vai acontecer quando as pessoas não têm conhecimento. A partir do momento em que o aluno viu que eu não era um monstro, houve uma mudança, ele entendeu a questão da transexualidade. Nas minhas aulas nunca aconteceram problemas. E a escola em si começa a mudar com a presença de professoras trans. A escola e o aluno começam a se sensibilizar com essas questões.
“A população trans começa a ser desrespeitada já no próprio nome. O nome social precisa ser respeitado”


Sul21 – Que medidas tu achas que os governos, em todas as esferas, podem implementar, em termos de políticas públicas, para combater a homofobia nas escolas?
Marina – São tantas coisas… Mas começa pelo princípio de que é preciso trabalhar com os profissionais da educação. E também favorecer um material condizente com a realidade. Os livros didáticos de Biologia mostram que “homem é isso, mulher é aquilo”. É preciso construir propostas e políticas em favor das questões de gênero. Em Canoas, estamos nos inserindo na educação em um trabalho transversal, assim como na saúde. Estamos instrumentalizando colegas professores sobre estes assuntos. Os governos também poderiam incentivar que as empresas abrissem as portas para profissionais trans. As meninas querem trabalhar. Aqui em Canoas, conseguimos, com a ajuda da Secretaria de Direitos Humanos, formar uma turma de trans pelo Pronatec. Elas vão iniciar um curso para se tornarem cabeleireiras. A maioria é profissional do sexo e quer fazer outra coisa. Esses estímulos devem ser colocados para que haja uma inserção no mercado.

Mestre em Educação pela UFRGS, Marina Reidel defende que é preciso construir propostas e políticas em favor das questões de gênero | Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – As faculdades também precisam formar seus profissionais de forma mais sensível às questões de gênero?
Marina – Sim, em todas as áreas. O Direito principalmente, assim com a Medicina. Os médicos muitas vezes não querem atender pessoas trans e travestis. Urologista não quer atender travesti, assim como ginecologista não quer atender a mulher transexual que fez a cirurgia. A população trans começa a ser desrespeitada já no próprio nome. O nome social precisa ser respeitado. Outro problema é o banheiro, principalmente nas escolas públicas. Qual o problema de as trans utilizarem o banheiro feminino? Se elas entrarem no banheiro masculino, serão agredidas e constrangidas.

Sul21 – Qual a tua opinião sobre a carteira de nome social? Há pessoas que criticam por dizer que não é o suficiente, que o nome deveria ser trocado na carteira de identidade.
Marina – Só quem não está na pele (faz essa crítica). Claro que é uma medida paliativa, mas foi uma demanda que veio da própria conferência estadual LGBT. A carteira social hoje é uma realidade para muitas travestis que não conseguem alterar o nome. Eu usei a carteira durante um ano enquanto fazia o processo de troca de nome no documento de identidade. A partir daquele momento eu me senti respeitada. É preferível entregar essa carteira, que possui o meu nome, Marina, do que entregar um documento onde aparece o nome do falecido (referência ao nome masculino que recebeu), onde as pessoas irão olhar para a foto e não irão entender nada. Para as mulheres trans e travestis, é muito humilhante chegar em um lugar ser chamada de “João” ou “Carlos”. Sempre que isso acontecia, em alguma situação de atendimento, eu ficava sentada. Nunca levantei quando me chamavam pelo meu nome civil. Eu pedia para me chamarem pelo nome social, mas, às vezes, as pessoas chamavam pelo nome civil de propósito. Eu ficava sentada. Depois de umas quatro ou cinco vezes, levantava e dizia que não tinha sido chamada, fazia um baile. Então a carteira social é um documento emitido pelo governo, as pessoas precisam entender que se trata de uma política afirmativa. Claro, o ideal, o que todas nós queremos, é a alteração do nome. Existe um projeto neste sentido tramitando no Senado, só que ainda não foi aprovado, ao contrário da Argentina, que está anos-luz na nossa frente.

“Nunca levantei quando me chamavam pelo meu nome civil. Eu pedia para me chamarem pelo nome social, mas, às vezes, as pessoas chamavam pelo nome civil de propósito. Eu ficava sentada” | Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Tu conseguiste trocar o nome na carteira de identidade. Foi um processo muito trabalhoso?
Marina – Foi com o pessoal do Serviço de Assistência Jurídica Universitária da UFRGS (SAJU), em um projeto em parceria com a ONG Igualdade e o NUPSEX (Núcleo de Pesquisa em Gênero e Sexualidade). Eles deram os pareceres, que são caríssimos. Os psiquiatras cobram uma fortuna. Neste projeto, os pareceres saíram de graça, então em um mês conseguimos alterar o nome. Nove pessoas entraram com o pedido na Justiça. Acho que o juiz ficou com medo de apanhar das travas e alterou rapidinho (risos).
“A Rede Trans Educ Brasil é sem fins lucrativos, não tem dinheiro para nada, nem apoio do governo. Às vezes eu bato na porta de um ministério e fecham a porta na minha cara”


Sul21 – Tu pensas em estender a pesquisa de mestrado para um doutorado?
Marina – Penso. Essa ideia da pedagogia do salto alto vai ser incorporada pela Rede Trans Educ Brasil. Teremos um encontro nacional das trans em Curitiba e eu vou propor que estudemos essas ideias para termos um referencial teórico sobre essas questões. Algumas professoras trans dizem que se sentem uma ilha. Acreditam que são as únicas professoras trans em suas cidades e em seus estados.

“Algumas professoras trans dizem que se sentem uma ilha”, afirma Marina, que pretende expandir estudos via Rede Trans Educ Brasil | Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Como funciona a organização da Rede Trans Educ Brasil?
Marina – Por enquanto, eu sou coordenadora da rede. Estamos criando um estatuto. É tudo muito devagar. Já criamos uma página no Facebook e estamos nos dividindo em pequenos grupos de trabalho. Estamos começando a andar. É uma rede sem fins lucrativos, não tem dinheiro para nada, nem apoio do governo. Às vezes eu bato na porta de um ministério e fecham a porta na minha cara. Já temos algumas propostas, talvez façamos um encontro estadual aqui em Porto Alegre em 2014. Ainda não temos data para o próximo encontro nacional. Talvez em Curitiba consigamos reunir um maior número de professoras.

Sul21 – Qual a tua função atualmente na prefeitura de Canoas?
Marina – Vim para cá neste ano. Fui convidada para ser assessora de Diversidade, da Coordenadoria de Diversidade. Existem seis coordenadorias ligadas ao gabinete do prefeito que lidam com direitos humanos. A nossa lida com diversidade sexual e religiosa. Além disso, ainda sou funcionária pública do estado. Estou afastada desde o ano passado. Também trabalhei na Secretaria Estadual de Educação, com formação de professores.

“O preconceito vai acontecer quando as pessoas não têm conhecimento. A partir do momento em que o aluno viu que eu não era um monstro, houve uma mudança, ele entendeu a questão da transexualidade” | Ramiro Furquim/Sul21

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